terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Identidade cultural e cotidiano em Maborosi e Encontros e Desencontros

A experiência de formação da identidade cultural é um processo que tem mudado ao longo do tempo, de acordo com os estudos desenvolvidos e a conjuntura social prevalente. Desde o indivíduo “onisciente” do Iluminismo ao sujeito “interativo” da Modernidade, trabalha-se uma teorização acerca da influência da cultura na formatação da identidade do indivíduo. Sendo assim, poderíamos traçar as características mais globais de uma sociedade, de modo que cada indivíduo proveniente desse círculo de convivência carregaria consigo tais características, sendo reconhecido e alocado em sua sociedade de origem de acordo com esses traços imanentes. No entanto, como proceder quando a linha que separa esses círculos de convivência se torna mais tênue, desmontando os padrões vigentes? Talvez sob essa perspectiva de uma sociedade pós-moderna, que cria uma “crise de identidade” e abala a estabilidade identitária dos indivíduos, uma comparação entre os filmes Encontros e Desencontros (Lost in Translation, 2003), de Sofia Coppola e Maborosi, a Luz da Ilusão (Maborosi, 1995), primeiro filme de ficção do documentarista Hirokazu Kore-eda se torne mais proveitosa, já que ambos foram produzidos num mesmo país em épocas diferentes e por diretores de nacionalidades distintas – uma americana e um japonês. Primeiro, vejamos como se constroem a narrativa dos dois filmes. 

Em Maborosi, um jovem casal vive num pequeno apartamento em Osaka. Ikuo (Tadanobu Asano), o homem, trabalha numa fábrica, enquanto Yumiko (Makiko Esumi) fica em casa com o bebê do casal. Todos os dias Ikuo vai de bicicleta para o trabalho, percorrendo um percurso paralelo à linha do trem. Até que, uma noite, ele não regressa, e seu corpo é encontrado mais tarde na linha, deixando a incerteza sobre uma morte acidental ou suicídio. Depois da morte do marido, Yumiko se casa com Tamio (Takashi Naitô), mas a apatia toma conta de sua vida. Já Encontros e Desencontros conta a história de Bob Harris (Bill Murray), uma estrela de cinema que está em Tóquio para fazer um comercial de uísque. Charlotte (Scarlett Johansson), por sua vez, está na cidade acompanhando seu marido, um fotógrafo workaholic (Giovanni Ribisi) que a deixa sozinha o tempo todo. Sofrendo com o horário, Bob e Charlotte não conseguem dormir. Eles se encontram, por acaso, no bar de um hotel de luxo, e em pouco tempo tornam-se grandes amigos. Resolvem então partir pela cidade juntos. A eles junta-se uma jovem atriz chamada Kelly (Anna Faris), com quem vão viver algumas aventuras pela cidade de Tóquio. 

Um primeiro aspecto que pode ser notado é o entrelaçamento de culturas presente em Encontros e Desencontros, em cenas como aquela em que japoneses e americanos se divertem cantando músicas no karaokê – músicas americanas – ou quando Bob Harris assiste a uma performance de uma stripper japonesa, embalada por uma música em língua inglesa,a qual ela provavelmente não compreendia. Essas paisagens formadas por um gosto comum se mostram como uma alteração da ideia de vizinhança meramente geográfica; a cultura americana, hegemônica em boa parte do mundo, impõe-se como a construtora de um sentimento transnacional de comunidade. É claro que não se pode negligenciar, nesse aspecto, a importância do processo de globalização, muito menos restringir essas paisagens ao campo da música. No mesmo filme, o próprio Bob Harris se vê num outdoor quando ele acorda na chegada a Tóquio, e depois no hotel volta a ver sua imagem num filme, já dublado por uma voz japonesa. Essa ideia de um mesmo produto para diferentes locais nos remete ao conceito de “identidades partilhadas”, trabalhado pelo teórico jamaicano Stuart Hall. Segundo essa ideia, “os fluxos culturais entre as nações e o consumismo global criam possibilidades de ‘identidades partilhadas’ – como consumidores para os mesmos bens, clientes para os mesmos serviços, públicos para as mesmas mensagens e imagens – entre pessoas que estão bastante distantes uma das outras no espaço e no tempo. À medida em que as culturas nacionais tornam-se mais expostas a influências externas, é difícil conservar as identidades culturais intactas ou impedir que elas se tornem enfraquecidas através do bombardeamento e da infiltração cultural”. A partir desse ponto, surgem perguntas como: serão as culturas nacionais igualmente expostas a uma infiltração cultural? O que determina o quão expansiva será uma cultura e por que meios ela se expande? 

Quanto a essas questões, não podemos ignorar a importância da pujança econômica de um país no processo de expansão da sua cultura – os EUA são o paradigma nesse aspecto. Para exemplificar, de maneira até radical, constato que nunca assisti a um filme de produção egípcia, mas já assisti a várias produções norte-americanas nesse país. Devo até mesmo confessar que Maborosi foi o primeiro filme japonês que assisti, muito embora o Japão tenha uma economia forte. O mesmo Stuart Hall diz que esses “padrões de troca cultural desigual, familiar desde as primeiras fases da globalização, continuam a existir na modernidade tardia. Se quisermos provar as cozinhas exóticas de outras culturas em um único lugar, devemos ir comer em Manhattan, Paris ou Londres e não em Calcutá ou em Nova Delhi”. Daí concluí-se que essas desigualdades na troca cultural refletem as disparidades existentes nos meios pelos quais essa troca se dá. Como esse processo de uma cultura transnacional se produz mais por meios de comunicação de massa do que por movimentos migratórios – basta pensar na cena do outdoor e do filme no hotel – vemos que uma maior possibilidade de expansão cultural deve-se ao domínio dos meios de comunicação de massa. Aí é curioso notar uma espécie de metalinguagem na produção de Sofia Coppola: ao mesmo tempo em que é uma produção americana, retrata ficcionalmente a forte presença americana em outro país, também por meio de filmes e anúncios. 

Outra faceta importante é o papel da tecnologia, diferente nas duas produções. Em Encontros e Desencontros, cenas como a de Charlotte ligando para casa em busca de conforto num momento de tristeza e solidão, ou as várias cenas nas quais Bob se comunica com sua família nos EUA – através de um telefonema que ele é avisado de que esquecera o aniversário do próprio filho – reforçam a ideia de uma implosão do espaço pela tecnologia. É nesse sentido que Stuart Hall argumenta que “os lugares permanecem fixos, é neles que temos ‘raízes’; entretanto, o espaço pode ser cruzado num piscar de olhos – por avião a jato, por fax ou por satélite”. Já em Maborosi, nos deparamos com outra abordagem, diferente dessa perspectiva funcional de tecnologia. Na cena em que Yumiko se sente incomodada pelo som alto do vizinho, pensa em pedi-lo para que diminua o volume do rádio, mas Ikuo a impede, argumentando que Yuichi (Gohki Kashiyama), filho do casal, gosta do som. Em outra cena mais adiante, já após a morte de Ikuo, Yumiko comenta com a mulher que banhava Yuichi sobre a relação do vizinho com o rádio. Ela diz que o som alto do rádio é a maneira que o velho vizinho tem de provar que está vivo, já que é um homem solitário. Vejo essa concepção diferente da relação homem/máquina como uma maneira de lembrar que o nosso mundo não é totalmente reificado, já que o rádio parece não ter uma influência ideológica sobre o homem, mas apenas lhe serve como um sinalizador de que está vivo. 

Olhar o trem que passa, a panela sobre o fogo ligado, duas pessoas sentadas conversando, sem que lhes possamos apreender a fisionomia. É notável como esse tipo de tomada presente em Maborosi nos causa inquietação, talvez porque estamos acostumados a uma lógica de causa/efeito, a uma racionalidade que impede a contemplação do corriqueiro, do banal. Essa característica do filme de Hirokazu Kor-eda, de propor uma poética do cotidiano dilacerado pelas transformações impostas pela Modernidade é algo enriquecedor, pois quebra com todo o conceito de cinema de clichês e happy ends. Outra marca dos quadros vazios de pessoas, apenas com objetos, ou mesmo os quadros com paisagens externas é marcar o ritmo do filme. Talvez fique muito mais nítido em Maborosi do que em Encontros e Desencontros a noção de usar o ritmo do cinema como uma forma de esculpir o tempo. Ainda que haja uma elipse no filme após a saída de Yumiko de Osaka, não há nenhum choque cronológico – a passagem de tempo é tão suave que a percebi apenas algum tempo depois, na segunda vez que vi o filme. Ao passo que em Encontros e Desencontros o tempo é mais atribulado, há as gravações de Bob Harris, o trabalho de John, o agitado bar do hotel que algumas vezes fica difícil perceber a passagem de um dia. Até o problema da insônia enfrentado por Bob e Charlotte passa a impressão de que eles nunca dormem. 

O choque estético do cinema japonês em relação às produções de Hollywood se relaciona também com as técnicas aplicadas, como o one scene/one shot utilizado na cena em que Yumiko chega à estação de trem para deixar Osaka. O fato de não haver corte de uma câmera para a outra, e a tomada ampla que confere ao telespectador o status de observador, testemunha dos fatos, o insere mais profundamente na cena, pois lhe permite contemplar cada nuance do quadro; seu olhar não é direcionado, não há uma “atrofia da imaginação e da espontaneidade”, conforme propunham os críticos da Escola de Frankfurt sobre o cinema, mas um distanciamento que proporciona uma melhor compreensão. Encontros e Desencontros, em contrapartida, já está mais em consonância com o universo hollywoodiano, não há um espaço tão amplo quanto em Maborosi para a construção de um resgate do cotidiano, posto que se trata de um filme comercial, e por mais que haja uma delicadeza no tratamento de algumas questões, o filme tem que manter uma trama palatável a um público massivo que busca uma história de amor, e não uma discussão de questões filosóficas e/ou estéticas – talvez essa seja uma das razões para a dificuldade em compreender filmes como A Árvore da Vida (The Tree of Life, 2011) de Terrence Malick, que também segue esse viés mais filosófico e contemplativo. 

O tratamento dado à morte de Ikuo é também passivo de uma reflexão. A história de que se tem conhecimento é que ele simplesmente andava sobre os trilhos da ferrovia, na direção contrária ao trem, sendo mais plausível a hipótese de um suicídio; no entanto, nada disso pode ser tomado como a verdade, são conclusões baseadas no testemunho do maquinista do trem, na ausência de Ikuo na fábrica... Mas nada pode ser provado. E a única evidência, o único vestígio real da morte de Ikuo – o seu corpo mutilado – é negado, tratado como algo que Yumiko “não reconheceria, não há o suficiente para se reconhecer”, nas palavras do homem que pareceu representar a fábrica em que Ikuo trabalhava. Essa estética adotada para representar a morte de Ikuo dialoga com a questão da ética na retratação de uma realidade cruel; ao invés do choque, a opção do filme é o afeto, manter a lembrança de um personagem vivo, não em pedaços. Ao mesmo tempo, essa ocultação dos restos mortais de Ikuo acaba por afligir ainda mais Yumiko, que passa a conviver com a dúvida sobre o que motivou a morte do marido. Talvez o contato, o impacto diante do corpo mutilado fosse tão completo de sentido que dispensaria uma explicação para a morte de Ikuo; ela simplesmente estaria ali, presente. 

Ao longo de Encontros e Desencontros, Charlotte e Bob constroem uma amizade muito forte, vivida intensamente no período que passam juntos em Tóquio. Contudo, há um momento em que essa amizade é abalada; depois de um desentendimento com Lydia (Nancy Steiner) por telefone, Bob acaba se envolvendo com a cantora do bar do hotel, no que parece uma tentativa de fugir dos problemas de casa que vinham pelo telefone. Quando Charlotte vai ao apartamento de Bob, o vê atender a porta enrolado em um lençol, e ouve a voz da tal cantora do bar lá dentro. Logo, deduz que eles transaram e sente-se atingida, traída de alguma forma – ainda que os dois não tivesse uma relação amorosa – e se afasta. A reconciliação só vem no fim do filme. Poderíamos esperar por uma monumentalização da cena, com um grande beijo após Bob salvar Charlotte de um grande perigo, pedindo desculpas pela “traição” e fazendo juras de amor eterno, mas não é isso que acontece. Não há remorso, arrependimento, tampouco espetacularização. Bob simplesmente abraça Charlotte, sussurra algo em seu ouvido, dá-lhe um beijo singelo e um abraço. E vai embora, como estava programado. Mesmo simples, talvez seja essa a cena mais emocionante do filme, o acerto de contas, ou o reencontro, onde o sublime aparece num ato de acolhimento do outro. Essa surpresa causada pela ausência da grandiloquência comum em Hollywood abriga esse sublime, uma forma diferente de amor que não carnal, o possessivo, mas o sincero afeto entre amigos, o acolhimento que esse sentimento proporciona. 

Qual atitude tomar quando uma memória não evanesce, insiste em ficar viva? Esse é o dilema enfrentado por Yumiko em Maborosi: definitivamente, ela não consegue superar a morte do marido. Embora se case novamente, mude de cidade e aparente levar uma vida feliz, a visita que ela faz à sua cidade natal, na minha opinião, evidencia que não saber o motivo da morte de Ikuo ainda a tortura, e só depois que ela volta dessa visita o guizo de Ikuo reaparece, como sua única lembrança do marido. Daí começa uma discussão entre Tamio e Yumiko: Tamio reclama de sua esposa ter uma lembrança tão viva do ex-marido, ao que Yumiko redargúi com a constatação da embriaguez de Tamio como uma tentativa de esquecer sua ex-mulher – Tamio chegara em casa ébrio. Antes da visita a Osaka, Yumiko realmente tentara esquecer essa morte de Ikuo, recomeçar a vida com seu novo marido, contudo, essa tentativa fracassou. Talvez as palavras do filósofo esloveno Slavoj Zizek ajudem a entender este fato. Ele diz que “a verdadeira escolha com relação ao trauma histórico não está entre lembrar-se ou esquecer-se dele: os traumas que não estamos dispostos a ou não somos capazes de relembrar assombram-nos com mais força. É necessário então aceitar o paradoxo de que, para realmente esquecer um acontecimento, precisamos primeiramente criar a força para lembrá-lo. Zizek diz ainda que “o contrário da existência não é inexistência, mas insistência”. Nesse sentido, o fato de a morte de Ikuo não ter “existido” – retomando a ideia sobre a ocultação do corpo – faz com que a dúvida quanto à razão da morte “insista”. No fim do filme, quando Yumiko conversa com Tamio sobre a maborosi, uma luz que aparece no meio do mar a qual seu pai vira quando ainda pescava. Segundo o pai de Tamio, essa luz parecia chamá-lo para mar aberto, numa espécie de encantamento. Tamio usa a maborosi para fazer Yumiko esquecer a morte de Ikuo, argumentando que ele pode ter visto algo como a maborosi, uma luz que simplesmente te encanta, chama para um lugar distante, e que ele escolheu ir. Na cena seguinte do filme, Yumiko se aproxima do pai de Tamio e lhe pergunta: “It’s getting warm, isn’t it?”. Essa cena, embora não pareça tão conclusiva à primeira vista, me pareceu a reviravolta na vida de Yumiko, o momento que ela “cria força para lembrar para poder esquecer”, como discorre Zizek – digo isso porque o mais lógico, se é que podemos estabelecer uma lógica no cinema, seria Yumiko perguntar sobre a maborosi, ficar mais curiosa ainda sobre a morte do ex-marido. Talvez ela tenha decidido, a partir de então, apenas caminhar diante do peso das coisas, com a leveza na alma.

Trailer de Encontros e Desencontros:


Trailer de Maborosi:

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