sábado, 28 de janeiro de 2012

O Mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov

... quem és, afinal? 

– Sou parte da força que eternamente deseja o mal e eternamente faz o bem. 

Fausto, Goethe 

Capa do livro, publicado
no Brasil pela editora
Alfaguara
Em plena Moscou stalinista, um “camarada” apelidado Mestre ousa escrever um romance sobre Pôncio Pilatos, narrando com detalhamento digno de um realista russo o calvário de Yeshua ha-Notzri (Jesus de Nazaré, em hebraico), até ser pendurado na cruz e morto, apesar da tênue tentativa do promotor de Yerushalaim (Jerusalém), o próprio Pilatos, de persuadir os representantes de Roma que aquele pobre diabo merecia o salvo-conduto da Páscoa. Quando a história é levada para a aprovação oficial, como não poderia deixar de ser, é massacrada pela crítica adepta do regime. “O que o camarada está pensando? Deu para escrever sobre crendices agora?”, devem ter comentado os membros da Massolit, espécie de secretaria responsável pela publicação de livros no regime soviético. Amargurado pela rejeição, o Mestre decide queimar seu romance na lareira de casa. Só que, como lhe diz o diabo em pessoa alguns dias depois, seria impossível livrar-se assim daquela história. Afinal, manuscritos não ardem. 

Essa é uma parte da trama de O Mestre e Margarida, romance do escritor ucraniano Mikhail Bulgákov (1891-1940). Iniciado em 1928, o livro só foi finalizado doze anos depois, semanas antes da morte do escritor. A epopeia para terminar o livro, que fique claro, não foi nada acidental. Bulgákov, durante a revolução de 1917, lutara pelo exército branco, contrarrevolucionário, uma condenação à categoria de escritor maldito depois que os vermelhos tomaram o poder. Era o extremo oposto de Gorki, o romancista dos bolcheviques, e até por isso não abria mão de satirizar as contradições que enxergava na sociedade russa, com tendência para a literatura fantástica – assim como fizera Gógol durante o século XIX, tendo o regime tzarista como fonte de inspiração – mesmo que isso resultasse em problemas para ver suas histórias publicadas. Com essa literatura fantástica, potencializada pelo sarcasmo, Bulgákov tornou viável uma visita do diabo e sua comitiva à ortodoxa Moscou do final da década de 20, onde deixou marcas que jamais seriam apagadas, nem mesmo pela censura oficial. O séquito satânico é composto por Behemoth, um gato preto que anda sobre duas patas, adora vodca e espetáculos exagerados; Korôviev, o ardiloso relações públicas do grupo; Azazello, um ruivo atarracado de ombros largos, caninos à mostra e feiúra indescritível; e Hella, "uma jovem totalmente nua, ruiva e com ardentes olhos fosforescentes". 

O Mestre e Margarida divide-se em duas partes: na primeira, é narrada a chegada da comitiva diabólica à Moscou e as várias confusões que acontecem por conta disso. Woland, o diabo, um moreno trajando terno, boina e sapatos cinzas, um olho preto e outro verde, aparece pela primeira vez na capital russa para Berlioz e Bezdômny, que discutiam em um banco de praça sobre como escrever um poema que negasse a existência de Jesus Cristo. Interessado pela conversa que, por conseguinte, negava a existência do próprio Deus, Woland se aproxima e argumenta em contrário, narrando suas conversas com Kant e garantindo que presenciou a crucificação de Jesus. Espantados, os dois russos tomam o “estrangeiro” por algum tipo de mago esotérico. Entretanto, para o infortúnio de Berlioz e Bezdômny, Woland prevê um futuro macabro para os dois: o primeiro seria degolado por um trem naquela noite, e o segundo, acabaria internado em um manicômio. Quando a profecia se cumpre, nem o céu é limite para o diabo na capital russa. 

O que se vê a partir daí é o caos, a subversão completa dos valores pregados pelo partido bolchevique, extremamente endurecido sob o controle de Stálin. Em um show de magia negra que Woland promove no Teatro de Variedades de Moscou, a ganância reprimida do povo russo se manifesta quando tem início uma distribuição de dinheiro estrangeiro – proibido pelo governo – e rublos, que depois do espetáculo se tornariam papel comum, sem valor; ou quando as senhoras são convidadas ao palco para adquirirem vestimentas de luxo que, fora do teatro, desaparecem no ar. Mas talvez um dos melhores ardis produzido pelo diabo tenha sido na Comissão de Espetáculos da cidade. Lá, um dos burocratas simplesmente sumira de dentro do seu paletó que, vazio, continuava a assinar a papelada com uma velocidade feroz e a dar broncas nos seus subordinados. Melhor retrato da impessoalidade e alienação das repartições russas seria impossível. Por meio dessas intervenções, o diabo surge como uma força moralizadora da sociedade russa, expondo a face mais reprovável do regime comunista. 

Já na segunda metade, o livro se concentra nos personagens-título, mencionados esparsamente nos capítulos iniciais. O mestre é um escritor de meia-idade que se apaixona por Margarida, maior incentivadora da carreira literária do amante. Após a enxurrada de críticas, o Mestre entra em depressão e acaba internado num manicômio – o mesmo de Bezdômny – enquanto Margarida volta a viver com o marido em sua mansão. Isso até ser visitada por Azazello, que lhe faz uma proposta um tanto perturbadora: ser a dama do diabo por uma noite, durante o baile que este último irá organizar em sua despedida da cidade. Transformada numa espécie de bruxa, Margarida segue para o baile voando nua em uma vassoura, um dos trechos mais surreais do livro. As duas partes da narrativa são entremeadas por capítulos do romance escrito pelo Mestre, o que produz um contraste interessante. Enquanto a prosa de Bulgákov é mais solta e interativa, sempre chamando a atenção do leitor, o romance do mestre tem um formato mais tradicional, com uma descrição extremamente meticulosa da Jerusalém bíblica – o que denota um extenso trabalho de pesquisa de Bulgákov –, diálogos austeros e profundos, bem diferentes do estilo mais trivial que predomina no resto do romance. 

O martírio de Mikhail Bulgákov para ver seus trabalhos publicados começa em 1926, um pouco antes de iniciar O Mestre e Margarida. Para se ter uma ideia do tamanho da resistência aos seus escritos, sua obra só foi publicada integralmente na Rússia depois da glasnost de Mikhail Gorbachev, na década de 80. Curiosamente, apesar de ter sua carreira prejudicada por não se submeter ao cabresto do regime, consta que Bulgákov era admirado por Stálin. Certa vez, inclusive, o escritor enviara uma carta desesperada para o ditador, pedindo emprego. E foi atendido! É claro, ficando sob vigilância estatal no teatro em que trabalhava. 

Com trechos e situações que podem ser entendidos como autobiográficos, O Mestre e Margarida é também uma reflexão sobre sentimentos como a perseverança e a bondade, tema presente em uma das conversas entre Jesus e Pilatos. Em momentos distintos da obra, Jesus e o diabo expressam, ironicamente, uma mesma visão: não há Bem ou Mal absoluto; a covardia é a pior das fraquezas humanas. Fraqueza à qual, apesar das adversidades, Bulgákov não sucumbiu, e fez publicar seu romance depois de tentar queimá-lo, como faz o personagem-título durante o livro, tornando verdadeira mais uma vez a já citada frase do diabo que se tornou proverbial na Rússia: manuscritos não ardem. 

O Mestre e Margarida na cultura pop 

Capa do CD Beggars Banquet, que
contém a música Sympathy for the Devil
Apesar dos contratempos, as marcas deixadas pelo romance de Bulgákov, considerado por críticos literários um dos melhores do século XX, perduram até hoje, transportando-se para outras áreas da cultura. A música Sympathy for the Devil, da banda inglesa Rolling Stones, foi inspirada no livro; assim como os Versos Satânicos, que levaram o Aiatolá Khomeini a proferir uma ordem de execução contra o escritor Salman Rushdie; Pilates, canção do grupo americano Pearl Jam, também teria como fonte de inspiração O Mestre e Margarida, tal como Love and Destroy, de Fran Ferdinand, seria baseada no baile de despedida do diabo em Moscou. Com enorme potencial para ser levado ao cinema, o livro chegou a ser roteirizado por Roman Polanski, mas nunca foi filmado. O diretor declarou que esse roteiro é a melhor coisa que ele jamais realizou. 

Quando a obra de Bulgákov finalmente foi publicada de maneira integral na Rússia, os moradores de um edifício da rua Sadôvaia, em Moscou, começaram a notar estranhas intervenções nas paredes do prédio. De uma noite para a outra, os corredores ganharam grafites, dentre os quais destacavam-se os muitos desenhos de um enorme gato preto, em poses variadas: bebendo vodca de uma tacinha, jogando xadrez, incendiando uma casa. O tal gato é Behemoth, e os grafites são obra de leitores do livro de Mikhail Bulgákov que faziam peregrinação ao prédio onde o escritor viveu e que também foi cenário do romance, abrigando o apartamento onde a comitiva do diabo se hospedara. 

As manifestações dos leitores fizeram com que o antigo apartamento de Bulgákov fosse transformado num museu dedicado ao escritor. As citações do livro, elogios a Bulgákov e discussões apaixonadas sobre os temas de O Mestre e Margarida, eternizados no grafite, são uma prova do carinho que até hoje os fãs têm pelo escritor maldito da Rússia de Stálin.
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